Em poucas palavras tentarei repassar aqui o que sinto como indígena Kaingang nesse momento de crise e de contato com essa nova peste que assombra o mundo chamada Covid 19/coronavirus .
Diferente e talvez parecido em alguns aspectos de outros povos ameríndios, ocidentais ou orientais, o povo indígena Kaingang em sua essência é um povo guerreiro que desde o princípio luta para manter viva sua cultura e seu modo próprio de viver e conviver no mundo, mantém fortes laços com sua ancestralidade e em muitos casos o morrer ou a morte é apenas uma passagem para o outro mundo. Todo povo chora ao ver um de seus membros partir para o mundo dos mortos e essa derradeira viagem é quase sempre um motivo de aproximação da família e de parentes daquele que fez a passagem. Mas o que está acontecendo com o mundo de hoje, que é além de um ato incontrolável até o momento tem sido algo que jamais o Kaingang esquecerá, pois a passagem/morte forçada pelo Covid 19, não permite que a despedida final aconteça, a família indígena se vê em um momento inimaginável, em que levará a terra um de seus sem fazer as despedidas finais, sem ter a oportunidade demonstrar ao seu ente querido o quanto era amado e respeitado entre os seus. Um mal invisível esse novo coronavirus, que além de levar a alma do guerreiro indígena, também tem a capacidade de levar consigo parte de uma cultura milenar que já sobreviveu a outros holocaustos e mais de cinco séculos de massacres e intolerância pelo simples fato de ser dono da terra que hoje não é sua.
Nossas lideranças são forçadas a ir contra nossa cultura, e num ato quase sem efeito, pedem ao povo que não saiam de suas casas, que não façam aglomerações de pessoas, mas sem sucesso, pois além da morte em si o povo Kaingang não consegue viver separado de sua família que vai além de pais e filhos, mas, envolve todo um núcleo familiar que em muitos casos ultrapassam o número de cinquenta indivíduos, e o fato de ter que se isolar de sua gente ou de sua comunidade é mais letal ainda do que o próprio coronavirus para um Kaingang.
Sei que com a ajuda dos nossos deuses e dos conhecimentos de nossos curandeiros e kujás, vamos vencer essa batalha, que os espíritos da floresta e de nossos ancestrais guiem os sábios da medicina a encontrar logo a cura e arma para enfrentar essa ameaça, que os guardiões da floresta nos protejam até esse dia.
Por Getúlio Kaingang – egresso da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, da UFSC, formado da 1ª turma)