Contribuições Indígenas em Tempos de Pandemia
“O vírus veio para mostrar que nós, os humanos, somos seres frágeis, e que dependemos da natureza”: entrevista com Daniel Kuaray
15/07/2020 - Por Valentina Nieto
Daniel Timoteo Martins, Kuaray “espírito do sol” como é seu nome em Guarani, mora na comunidade Guarani de Biguaçu, na Terra indígena Mbiguaçu Yyn Morontchin Wera (águas cristalinas), na região da grande Florianópolis, em Santa Catarina. Daniel recentemente se graduou do curso da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com um belo trabalho sobre memória e plantas medicinais na sua comunidade. Ele trabalha na sua aldeia como professor da escola local há 7 anos.
Conversei com ele sobre seu trabalho como pesquisador, professor e a situação da sua comunidade neste tempo de quarentena pela Covid-19.
Valentina: Fala sobre teu trabalho de conclusão do curso (TCC) e tua experiência como pesquisador.
Daniel: Meu TCC “Moã Ka’Aguy Regua – Tekoa Mbiguaçu: As memórias das plantas medicinais” (https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/204722) trata sobre os saberes tradicionais de minha família e de minha comunidade sobre as plantas medicinais Guarani, pois estas são um dos fundamentos principais para a educação corporal Guarani, fazendo parte das narrativas de criação de mundo e do reconhecimento do território tradicional. Primeiro apresento o histórico de minha família, a caminhada dos meus antepassados até esta comunidade e trago a visão da educação Guarani sobre o corpo, entendido também como território e a comunidade como um corpo só. Apresento as plantas com as quais minha família tem trabalhado e vou relacionando estes saberes com a educação, a espiritualidade, a música, o corpo e o artesanato. Eu trago tudo isto através da memória, como uma forma de resistência de nosso povo.
Valentina: Como surgiu a ideia de fazer essa pesquisa?
Daniel: A ideia de fazer esta pesquisa surgiu como uma homenagem à minha mãe, que sempre trabalhou com ervas medicinais, na prevenção e no tratamento de algumas doenças do corpo, do espírito e da mente. As memórias de nossos anciãos estão indo. Então nós, os jovens, devemos registrar nossos olhares como indígenas. Porque aqui na comunidade temos especialistas anciãos em várias áreas diferentes. Alguns entendem de arte, de cura, de artesanato e outros, como minha família, têm esse saber sobre as plantas medicinais. Eles ensinam isso no dia a dia, de forma oral, como antigamente, porém hoje em dia estamos nos transformando para a escrita. Então fiz isto em homenagem aos anciãos Guarani que já passaram esse conhecimento.
Minha ideia era trazer a memória de meus ancestrais tanto para os indígenas Guarani, como forma de registro histórico, e para trazer discussões sobre plantas no nosso território. Também, para dar a conhecer esses saberes a pessoas de outras culturas. Para mim, isto foi uma forma de retribuir à minha comunidade e à minha família.
Valentina: Fala sobre tua participação na cartilha “Práticas terapêuticas para a qualidade de vida física, mental e espiritual – Fortalecendo a imunidade”.
Daniel: Elis Nascimento, doutoranda no PPGAS, também pesquisadora vinculada ao IBP e amiga, me propôs escrever a cartilha sobre o olhar indígena das formas de prevenção. Eu fiz um texto mais simples, mas este ano foi publicado pela Prefeitura de Florianópolis e o SUS [Sistema Único de Saúde]. A cartilha reúne práticas de autoatenção desde a cosmovisão Guarani: limpeza do corpo e do espírito; beber muita água e chás; respeitar a vida de cada ser; pedir autorização e proteção; e a importância do canto e da dança no processo de cura. Também traz informação sobre a fitoterapia indígena Guarani.
A parte da cartilha com a Cosmovisão Guarani está disponível em: https://licenciaturaindigena.ufsc.br/files/2020/05/Pra%CC%81ticas-terape%CC%82uticas-para-a-qualidade-de-vida-fi%CC%81sica-mental-e-espiritual-fortalecendo-a-imunidade.pdf)
Clique na imagem para baixar a cartilha completa
Valentina: Como a pandemia está afetando a vida na tua comunidade?
Daniel: Esse vírus veio para colocar medo em todos nós. Para nós essas memórias de sofrimento estão ainda presentes. Os mais velhos, desde muitos anos, vinham nos contando sobre as experiências dolorosas com outros tipos de epidemias, como gripes, sarampo. Várias outras doenças que mataram muitos parentes. Eles diziam que pessoas vinham e traziam roupas, colchões, coisas que estavam contaminadas.
Os velhos também nos falavam de um evento que iria chegar para mudar o mundo Guarani. Eles tinham sonhos sobre as grandes mudanças do mundo e nos contavam as histórias sobre o final dos tempos. Segundo eles, esse acontecimento irá nos unir, pois estávamos perdendo o contato com o divino, com essa espiritualidade Guarani. Assim, a gente já estava se preparando espiritualmente.
Mas quando o vírus chega, nós, os mais jovens, ficamos muito assustados, porque vimos que nossos velhos tinham razão. Então, quando o vírus passou a matar pessoas e a chegar perto de todos os povos, a gente começou a se preocupar com as crianças, com os mais novos, com os alunos. Os mais jovens são os que estão com mais medo, pois eles têm mais acesso às novas tecnologias e, assim, a mais informação, e as crianças já estão notando esse medo. Essa preocupação é muito forte! Isso que estamos vendo nos assusta, pois você vê muitos seres humanos morrendo e a gente se coloca no lugar do outro. Esse vírus não é só uma doença do corpo, é também uma doença espiritual, pois todo mundo está sofrendo com essa preocupação. Aqui, está cada um na sua casa, conversando com os vizinhos, e tendo o ritmo do cuidado Guarani do corpo e do espírito. Meus alunos estão fazendo pesquisa sobre isso.
Valentina: Quais medidas estão tomando para se cuidar?
Daniel: Primeiro, como todo mundo, deu um choque. Mas agora estamos vendo como viver nessa pandemia, porque não atacou só a gente, vai atacar a todo mundo. Como vivemos perto de cidades, temos que nos cuidar mais, pois já vimos que em aldeias perto de São Paulo há pessoas contaminadas. Então, nós evitamos sair para visitar os parentes, para não contaminar eles. Também fazemos mutirão de plantio, de limpeza das árvores frutíferas. Trabalhamos o máximo possível para não parar. Comemos da nossa própria roça, tomamos bastante chá para fortalecer o corpo e a saúde. Isso ajuda bastante.
As medidas de prevenção, desde a visão Guarani, são a limpeza espiritual e corporal. Tomar banho de várias ervas. Desde antes da pandemia, já tomávamos banho de ervas para limpar as energias, nos purificar desses males, pois existem vários tipos de energias diferentes. Também é importante para manter a relação com a natureza. Plantas medicinais fazem bem à saúde.
Esses são rituais que fazemos diariamente. Hoje vi um jovem que veio na escola e estava pegando uma planta para fazer limpeza do corpo. Há plantas medicinais espalhadas por toda a comunidade e têm pessoas que não sabem, mas há outros que sabem em outra comunidade e mandam a receita para nós. A tecnologia tem nos ajudado muito com essas trocas de conhecimentos, pois não podemos nos automedicar. Assim, entre várias comunidades, estamos trocando informação e produzindo materiais. Eu fiz a cartilha que falei antes.
Também estamos recebendo doação através da SESAI [Secretaria Especial de Saúde Indígena, responsável pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena] e através de parceiros, pois agora não podemos contar com a venda dos artesanatos, que era o que ajudava a manter a economia. Há uma rede de pessoas que estão ajudando para que isso seja possível. E isso é bastante importante.
Nas cozinhas comunitárias estamos retomando com todos os cuidados de prevenção, higienizando tudo. Almoçamos juntos e tomamos cafés alguns dias, pois manter essa interação é muito importante.
Os mais velhos estão fortalecendo a gente.
Essa doença veio para que a gente aprenda como ser humano. Nós achamos que somos os donos do mundo, que temos o poder de mudar tudo, mas o vírus veio para mostrar que nós, os humanos, somos seres frágeis, e que dependemos da natureza.
Valentina: Quais são as maiores dificuldades agora?
Daniel: Há uma dificuldade para que as pessoas não saiam a visitar seus parentes, pois sempre existiu uma grande mobilidade entre as aldeias. Tinha os jogos Guarani, e algumas cerimônias que sempre fazíamos. Agora estamos fazendo internamente, porque é necessário manter a distância entre as aldeias. Como se fosse um corpo, se um adoece, toda a comunidade adoece, mesmo espiritualmente, e isso é importante.
Nós, os povos indígenas, estamos sofrendo muito com esse vírus. Mas além disso, estamos tentando defender nossas terras. Agora começaram as queimadas, e a gente não sabe se essas queimadas das nossas matas são criminosas.
Nós vamos lutar até o fim pra manter nossos costumes, nossa tradição, para manter nossa terra sadia, com nossas crianças felizes e guerreiras.
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Publicado por Desacato em Quinta-feira, 18 de junho de 2020
A dor da perda/morte de indígena Kaingang
Em poucas palavras tentarei repassar aqui o que sinto como indígena Kaingang nesse momento de crise e de contato com essa nova peste que assombra o mundo chamada Covid 19/coronavirus .
Diferente e talvez parecido em alguns aspectos de outros povos ameríndios, ocidentais ou orientais, o povo indígena Kaingang em sua essência é um povo guerreiro que desde o princípio luta para manter viva sua cultura e seu modo próprio de viver e conviver no mundo, mantém fortes laços com sua ancestralidade e em muitos casos o morrer ou a morte é apenas uma passagem para o outro mundo. CONTINUAR LENDO
Povos Indígenas e o coronavírus: um olhar Kaingang sobre a pandemia
Joziléia Daniza Jagso Kaingang * Indígena Kaingang, antropóloga, doutoranda em Antropologia Social – PPGAS/UFSC e coordenadora pedagógica do curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, da UFSC. Disponível em Boletim CAAF edição especial.
Março de 2020 foi o mês em que o novo coronavírus e sua doença chamada de Covid-19 trouxe muitas preocupações e mudanças nas aldeias. Falas dos anciãos retomaram as lembranças das epidemias que enfrentaram, das perdas que tiveram de pais, irmãos, cunhados, tios, filhos e netos. Nós, Kaingang, somos o terceiro povo mais populoso do país, de acordo com os dados do IBGE de 2010. Nosso território tradicional está localizado desde São Paulo até a província de Misiones na Argentina. Infelizmente, o longo do processo colonizador e sua política de ocupação levaram à perda irreparável de vidas, territórios e muitas tradições do nosso Povo. CONTINUAR LENDO
A EDUCAÇÃO DO CORPO E DA ALMA NA COSMOVISÃO GUARANI
Contribuição do acadêmico Guarani, Daniel Kuaray Timóteo Martins, do curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, da UFSC.